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Uma guerreira em outubro

25 outubro 2025
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A semana foi de chuva intensa — um ensaio geral para o inverno que se aproxima depressa. As estradas tornaram-se mais silenciosas, desertas de motas. A minha Vision, quando lá está, parece sempre em minoria: um ponto vermelho entre um mar de carros cinzentos, como se a cidade tivesse perdido a coragem de se molhar. Em pleno outubro, trato das prendas de Natal. Este ano decidi fazê-lo com tempo, sem correrias nem centros comerciais a rebentar pelas costuras. Tudo online , tudo sem pressa. Mas há um prazer que o ecrã não substitui: o momento em que saio do trabalho e vou buscar as encomendas. Uma pequena travessia até um ponto de entrega — e já isso basta para sentir o mundo outra vez. A chuva muda tudo. O asfalto ganha reflexos, as folhas colam-se ao chão, o ar tem cheiro de ferro e terra. Há uma serenidade que só existe quando o mundo abranda. Mesmo sozinha, num parque de carros imóveis, a Vision parece em casa. Uma guerreira discreta que, entre pingos e faróis, continua ali: vermelha,...

Castanhas à altura

22 outubro 2025
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Saí num dia de transição. O outono ainda se mostrava solarengo, com um calor tardio que confunde as folhas. No andamento da Vision, o vento vem ao meu encontro — fresco, limpo, e com aquele aroma seco que anuncia mudança. O caminho mais curto talvez fosse o mais rural, a contornar a cidade. Mas preferi o misto: o urbano com sabor a campo. Desço a Rua de Caires, subo Andrade Corvo, passo diante do Arco da Porta Nova e espero o sinal verde nos Biscaínhos. A cidade gira comigo. Sigo pela Variante de Real e, já em Frossos, viro para Mire de Tibães — onde o cimento cede lugar às árvores e os muros voltam a ser de pedra. A minha mulher? Encontrei-a no final da manhã, a trocar a roçadoura pelo balcão. O almoço esperava-nos. Falámos, claro, de castanhas — as que ela apanhara de manhã, e as que eu ajudaria a apanhar de tarde. Eram gordas, lisas, quase perfeitas, daquelas que parecem escolhidas para fotografia de catálogo. Mas estas eram nossas, colhidas com o vento a levantar folhas e a fazer t...

Um cipreste em outono

18 outubro 2025
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O trajeto fez-se em silêncio, com a serenidade das manhãs de outono que ainda guardam a frescura da noite. A estrada quase deserta, o mundo a recompor-se devagar. Havia no ar um sossego que combina bem com a ideia de votar cedo — antes de o dia se distrair com outras urgências. Cheguei ao pavilhão desportivo poucos minutos depois de abrirem as urnas. À porta, apenas um punhado de pessoas, como se a democracia também precisasse de tempo para acordar. Tem sido sempre ali que voto. Não o associo a desporto, embora tenha formato de ginásio: para mim é uma espécie de santuário laico, onde cada um deposita o que tem de mais íntimo — a escolha. A minha mulher estava na mesa três, já em funções. Vi-a ao longe, concentrada, sem se aperceber da minha presença. Hesitei em aproximar-me. Há deveres que é melhor não interromper, mesmo quando o coração o pede. Segui então para a mesa um, onde o meu nome me costuma colocar. Tudo decorreu com naturalidade, sem filas, sem pressa. Gosto do toque do papel...

Moto-táxi conjugal

14 outubro 2025
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O carro da minha sogra serve muitas vezes de veículo de substituição — quando outro se avaria ou, por qualquer motivo, não pode circular. Nessas ocasiões, a minha mulher costuma devolver-lho e regressar a casa a pé. Foi então que vi uma oportunidade para mudar o guião. Liguei-lhe como quem não quer a coisa, perguntando se não queria boleia — omitindo, claro, o pormenor de que seria de mota. O domingo estava solarengo, desses que convidam à rua, e a Vision ainda repousava à sombra da garagem. Soava-me a pretexto perfeito para a dupla afinada sair à estrada, não para transportar comida, mas para fazer de moto-táxi familiar. Pelo caminho, uma menina que seguia num carro acenou-me. A Vision é uma mota simpática: não assusta crianças. À chegada, o telemóvel começou a tocar; buzinei, e quando a minha mulher olhou, percebeu logo. Nenhum ar de surpresa — apenas aquele meio sorriso de quem já desconfiava. Enquanto aguardava por ela, pousei os dois capacetes em cima do banco. Quando chegou, pego...

A linha verde do Minho

11 outubro 2025
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Há estradas que não precisam de estar na moda para nos pedirem quilómetros sobre elas. A EN201 é uma dessas. Rasga o Minho a meio, como a EN2 rasga Portugal de norte a sul. É feita de contrastes: pequenos negócios à beira da estrada, indústrias discretas, casas de pedra já velhas, quintas com muralhas cobertas de musgo, natureza verdejante, montanhas que parecem eternas — até ao momento em que as pedreiras começam a devorá-las sem cerimónia, logo depois de Ponte de Lima. A partida fez-se apressada. Havia um compromisso à espera no destino, mas não é todos os dias que a Vision se prepara para ultrapassar a centena de quilómetros no mesmo dia. Quis o destino que, no mesmo dia em que a minha scooter se esticava para bater recordes de distância, a Honda publicava também uma fotografia nossa nas suas redes. Como se as duas viagens — a virtual e a real — se cruzassem num mesmo instante. Saí de Braga após o almoço, com o depósito cheio, e deixei a cidade pela Ponte de Prado. A travessia foi ...

A tampa das autárquicas

8 outubro 2025
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Há uma tampa de esgotos no meio de uma rua próxima, e por onde passo todos os dias, que resume o estado do concelho. Está partida em seis, mas continua no lugar, resignada, a aguentar o peso de quem passa. Passam carros, passam carrinhas de campanha, passam promessas de requalificação urbana e “mobilidade sustentável”, e ninguém repara que o chão onde assentam os slogans já não é inteiro. A cada passagem, a tampa estremece. As fissuras desenham uma estrela imperfeita, feita de ferro gasto e de indiferença acumulada. Ninguém sabe há quanto tempo está assim — talvez desde as últimas eleições, talvez desde sempre. Mas ali continua, disfarçada entre o paralelo, como se o tempo também tivesse desistido de a consertar. Para quem anda de mota, é uma cilada. A roda da frente, se ali cai, pode dar direito a crónica póstuma. E no entanto, nenhum cartaz menciona o perigo. Os candidatos circulam em cortejo, com colunas aos berros e sorrisos de catálogo, a prometerem “mais segurança nas vias munic...

A política ao retrovisor

6 outubro 2025
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Pensei que tinha escrito apenas mais uma crónica: um texto sobre buracos, passadeiras e o silêncio das candidaturas em Braga perante a vida dos motociclistas. Publiquei, fechei o computador e segui viagem — porque a cidade não espera por ninguém, muito menos por quem anda em duas rodas. Horas depois, o inesperado: candidatos respondem-me diretamente. Frases curtas, quase tímidas — mas que soaram mais alto do que muitos cartazes colados nas paredes. Na manhã seguinte, a surpresa repetiu-se: um email formal, assinado pela assessora de uma candidatura, agradecendo em nome do candidato, elogiando o blogue e prometendo atenção futura. Palavras alinhadas, seladas com carimbo político. Dias depois, percebi que havia mais ecos do que pensava. O primeiro texto começou a aparecer nas redes sociais: páginas oficiais de candidatos, estruturas locais do partido, juventudes, militantes. O mesmo texto multiplicado em diferentes perfis, como se tivesse sido convocado para uma campanha que nunca plane...

Primeiro serviço

3 outubro 2025
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A estreia não tardou. A minha mulher, que tantas vezes olha para a mota com cepticismo, foi desta vez a responsável por me lançar à estrada. Já a hora ia adiantada, a fome apertava, e ela pediu-me: — Vai buscar o jantar… mas leva a mochila. Disse-o com um sorriso, daqueles que misturam a alegria de quem acredita no blogue com a urgência de quem acredita no estômago. O pedido era claro: hambúrgueres. E assim, com todos de acordo, lá seguimos eu, a Vision e a mochila, rumo à missão. A noite caía depressa, os dias já encurtam. Enquanto descia Ferreiros, entrou também na rotunda uma PCX com mochila da Glovo. Os aromas no ar não enganavam: era a hora do jantar e cada mota parecia perseguir o seu destino gastronómico. Cheguei ao restaurante e estacionei com pompa. Entrei pela frente, mochila às costas, alças refletoras a anunciar-me como paramédico de fast food . No quiosque, elaborei o pedido com uma solenidade exagerada, como se a integridade da missão dependesse disso. Paguei como um vulg...

O estrado plano e o luxo urbano

30 setembro 2025
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Os catálogos falam em potência, consumos, travões de disco e iluminação LED. Mas nenhum deles se lembra de mencionar a característica que, no fundo, pode decidir a compra: um estrado plano. Não vem escrito que uma verdadeira companheira urbana tem de saber carregar um saco de cinco quilos de carvão sem perder a elegância. A Vision não é apenas 110cc de liberdade, é também o UberEats dos churrascos caseiros. O estrado plano é um detalhe técnico quase envergonhado, escondido entre linhas de design e fotografias com capacetes sorridentes. Mas é ele que transforma a scooter numa aliada de guerra do quotidiano: já trouxe sacos de batatas que pareciam vindos diretamente da lezíria, melancias capazes de rivalizar com bolas de Pilates e, agora, carvão — esse ouro negro das tardes de verão. O saco pousa-se ali, aos pés, com a naturalidade de quem viaja em classe executiva. Não há cordas, não há improvisos com elásticos de estendal, não há aquele malabarismo circense de tentar equilibrar pesos...

Astronauta de PVC

27 setembro 2025
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A previsão prometia gotas nas próximas horas, nuvens carregadas no horizonte. Perguntaram-me três vezes — três pessoas diferentes, em sítios distintos — se eu ia vestir o fato de chuva. É curioso: nunca me perguntam se já almocei, se dormi bem ou se tenho gasolina. Mas se o céu ameaça pingar, logo surge a questão fatal: “Vais de fato de chuva?” O fato de chuva tem esta particularidade: não é bem roupa, é um disfarce. Cada vez que o visto, deixo de ser um tipo de mota e passo a parecer um astronauta de PVC, pronto a descolar da rotunda em direção a Saturno. Para quem vê de fora, é ridículo. Para quem vai dentro, é quase heroico. Não nos protege do mundo inteiro, mas salva-nos do pior. Não sei se me perguntam isto frequentemente por cuidado, por pena, ou por acreditarem que andar de mota à chuva é sinal de maluquice. Talvez, no fundo, a pergunta traga uma esperança secreta: a de que, desta vez, eu me renda ao carro, esse templo seco com estofos fofinhos e rádio integrado. Mas o carro não...

Na penumbra da garagem

23 setembro 2025
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Há quem diga que uma garagem é só um lugar de arrumação. Para mim, é o palco silencioso de chegadas e partidas. Nos últimos dias, a rotina da casa trouxe uma surpresa: por iniciativa da minha mulher, a garagem foi reorganizada. Sem alardes, apenas uma nova ordem que se fez notar quando abri a porta e encontrei a Vision a habitar o espaço pela primeira vez. Deixou de dormir na rua, coberta contra a chuva e a poeira, e ganhou finalmente o direito a quatro paredes. Agora, a cada regresso, é como se respirasse melhor. Não precisa disputar centímetros com caixas ou bicicletas: tem o seu canto, com a dignidade de quem passou de hóspede da calçada a residente da casa. Olho a sombra dela contra o vidro do portão e penso que é curioso como uma mota pode conquistar estatuto. Não pelo barulho que faz na rua, mas pelo silêncio que ocupa em casa.

A pausa da Soutinha

20 setembro 2025
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A cidade tem destes segredos: deixa-nos andar distraídos no trânsito, entre o roncar dos motores e os semáforos, até que um desvio breve revela um outro mundo. Foi assim que encontrei a Cascata da Soutinha , escondida no coração de Braga, onde o Rio Este se oferece em queda sobre pedras antigas, lembrando que até a pressa tem frestas por onde escorrer. O som da água impõe-se devagar. Não é estrondoso, mas persiste, como se dissesse que a cidade pode passar lá em cima, indiferente, e ainda assim o rio cumpre o seu murmúrio. Há frescura no ar, aquele cheiro húmido que mistura folhas, pedra e sombra, como se o verão tivesse aqui o seu refúgio secreto. O olhar descobre reflexos na espuma, desenhos de luz que dançam sem esperar ninguém. E há também a ponte. Sobre ela, discreta mas visível, a Vision ficou à espera. Quem olha depressa talvez não a veja — confundida com o vermelho das grades, como se fosse apenas detalhe — mas ela está lá, testemunha do instante. Sem ela, não teria chegado. C...

Silêncios e promessas: o lugar dos motociclistas em Braga

18 setembro 2025
Em outubro, Braga escolhe novo presidente. E vereadores, e assembleia, e juntas, e tudo aquilo que parece muito distante — até ao dia em que falta uma passadeira, um lugar para estacionar, ou um buraco no alcatrão nos manda ao chão. E nós, os que andamos de mota, onde estamos nessas escolhas? No início de agosto, enviei a todas as candidaturas uma pergunta simples: que medidas propõem para melhorar a circulação, estacionamento e segurança dos motociclistas em Braga? Apenas isto. Interesse mínimo, um fio de atenção ao quotidiano urbano. As respostas — ou a sua ausência — foram reveladoras. CHEGA Braga respondeu com detalhes que merecem ser transcritos: Parqueamento exclusivo: mais zonas sinalizadas para motociclistas em áreas de grande movimento — comerciais, escolas, hospitais, serviços públicos e zonas residenciais. Um esforço claro para tirar-nos da informalidade dos improvisos. Reforço de sinalização e pavimento: buracos, irregularidades e sinalização insuficiente tornam-se perigo...

A Minha Honda no palco da Honda

16 setembro 2025
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Nunca pensei que um blogue tão íntimo, feito de pequenas crónicas do quotidiano e das minhas voltas de Vision por Braga, pudesse viajar tão longe. Mas, de repente, dei por mim a ver a minha fotografia e as minhas palavras nas redes sociais oficiais da Honda Portugal Motos . Há qualquer coisa de comovente em perceber que a rotina de uma scooter a rolar pelas ruas da cidade pode encontrar eco no espaço da própria marca que a construiu. É como se a simplicidade dos meus dias tivesse sido ampliada, passando de confidência pessoal para partilha pública. Sinto orgulho, claro, mas também responsabilidade. Se a minha voz passa a ecoar ligada à Honda, então cada linha ganha um peso novo: o de estar à altura da confiança que depositam neste pequeno projeto. Tudo isto confirma uma ideia simples: escrever sobre a Vision nunca foi apenas escrever sobre uma mota. Foi sempre sobre liberdade, sobre proximidade, sobre ver a cidade de outra maneira. E agora, é também sobre ver esse olhar reconhecido e ...

O nevoeiro também é estrada

13 setembro 2025
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A minha mulher vai trabalhar e eu não hesito em aproveitar antes disso um momento com ela, tomando juntos o pequeno-almoço fora quando a casa ainda dorme. A carrinha de trabalho está pronta para mais um dia de jardinagem. E eu, saio atrás dela com um enorme argumento: pela primeira vez tenho o nevoeiro como cenário envolvente entre mim e a Vision. Trouxe-me à lembrança os frequentes nevoeiros de Sintra. A paisagem fica envolta em mistério e transmite uma tranquilidade diferente. Já chegaram os primeiros dias de chuva e a Vision tem sido mais vezes massajada com um pano, para que não circule às manchas das gotas. A indumentária já pede manga comprida nas manhãs, enquanto a Vision pede trajetos maiores agora que o sol regressa, ainda que de forma intermitente. É difícil o estado do tempo ditar-nos os planos. Mais difícil é encontrar um motivo para sair — não que precisemos dele. A fama que temos já basta para aceitarem com naturalidade esta relação que nos leva para a rua, para a estrada...

Estafeta inútil

10 setembro 2025
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Chegou. Vermelha, quadradona, reflexos prateados no interior. Um ar de equipamento hospitalar que me faz sentir meio estafeta, meio paramédico de frangos de churrasco. Parece saída de uma ambulância. Não traz ligaduras nem soros, mas tem todo o ar de poder salvar vidas — ou pelo menos jantares atrasados. Hesitei por instantes: isto é um acessório ou uma nova identidade? Olhei-me ao espelho e percebi a mutação. De cidadão comum passei a socorrista de bifanas, mensageiro de refrigerantes, paramédico de pizas. Não é só uma mochila. É a fronteira entre o sofá e a rua, entre a apatia e a gasolina. Um objeto de nylon que, parado nas escadas, parece já impaciente, à espera do primeiro serviço — mesmo que seja só ir buscar duas baguetes à pastelaria. A Vision, discreta como sempre, ganhou agora um adereço que grita fluorescente. A cidade está habituada a motas de entrega, não a motas de contemplação. Talvez seja esse o meu pequeno luxo: atravessar ruas sem relógio a contar minutos, mas com es...

A Vision fardada

7 setembro 2025
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Fui a Esposende de carro. Sim, de carro — e logo aí o passeio começou com um travo de tristeza. A minha Honda ficou em casa, esquecida na entrada, como quem perde um lugar à mesa. Mas à beira-rio, no passeio largo e cheio de vento, encontrei uma parente dela. Não tinha liberdade no olhar nem escapadelas no destino. Trazia uniforme: mala dos CTT, número de frota colado na frente, e o peso de muitas cartas às costas. Era uma Vision também, mas fardada. Uma Vision de serviço. Pensei: que diferença entre a minha e esta! A minha corre comigo pelas ruas sem obrigação de horário; leva-me ao trabalho, mas também ao nada — ao café sem pressa, ao regresso pela curva mais bonita, ao desvio sem justificação. A dos CTT carrega envelopes, encomendas, boletins, notícias boas e más. É a ponte que nunca falha, a presença invisível que costura a rotina dos outros. E no entanto, olhando bem, percebi que partilhamos a mesma essência. O mesmo motor que se acende com um toque, o mesmo corpo leve a pedir cur...

Carrinhos nas motas

3 setembro 2025
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Tinha elogiado o Mercadona. Disse que era o único supermercado nas proximidades que reservava lugares para motas, logo à entrada, um exemplo vindo de Espanha. Porém, a história ganhou um rodapé inesperado. Cheguei para umas compras rápidas — cápsulas de ómega 3 e três garrafas de cocktail de maracujá. Não estive lá mais do que dez minutos. Mas bastou: os três lugares destinados às motas estavam ocupados por carrinhos de compras, bem alinhados, oito de uma vez, como se fosse um mini-armazém. Estacionei mal, junto à entrada, ao lado dos carros elétricos. A razão estava comigo. Subi o tapete rolante e, logo na caixa, pedi: — Boa tarde, a quem devo solicitar o Livro de Reclamações? Chamaram a gerente. Veio com pressa, e após lhe mostrar a fotografia a primeira reação foi a de culpar os clientes, como se alguém fosse às compras com oito carrinhos encaixados uns nos outros. Ripostei. O segurança aproximou-se, diplomático, ofereceu-se para ajudar a libertar o espaço e ainda soltou um sorriso...

No rasto do sorriso

1 setembro 2025
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Eu e a Vision partimos em direção a Lomar, num dia quente, mas com vento agradável, que agitava a roupa, a pele e os pensamentos. O trânsito estava presente, mas nada que atrapalhasse a viagem; fluía com a leveza de quem percorre ruas conhecidas. Ver outros motociclistas na estrada é sempre uma alegria — um contraste reconfortante com o silêncio do inverno e mais uma desculpa para sair de casa e sentir a estrada sob rodas. Chegámos junto à casa de um colega, onde a recolha do equipamento do Sporting Clube de Braga, personalizado para o meu enteado, aconteceu em total descontração: calções, chinelos, esplanada às moscas. O calor convidava a pouco mais que bebidas frescas, ambientes climatizados e água de praia fluvial. No banco da Vision, o vermelho e branco do equipamento fundia-se naturalmente com o brilho da mota, como se tivesse sempre pertencido ali. O sol transformava cada superfície numa presença quase tátil — o asfalto escaldante sob a Vision lembrava-me a força do verão, intens...

Contrabando verde numa mula urbana

29 agosto 2025
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A manhã ainda mal tinha acordado e já eu recebia uma chamada de emergência. Não era do trabalho, não era dos bombeiros, nem sequer da farmácia de serviço. Era da minha mulher, em plena missão de jardinagem, aflita por se ter esquecido dos carregadores das baterias dos corta-relvas. Sem eles, a manhã corria o risco de ficar irremediavelmente perdida — e eu, inevitavelmente convocado. Lá fui então, com a Vision a postos. O banco abriu-se como a barriga de um contrabandista, engolindo os dois carregadores de lítio como se fossem barras de ouro em trânsito clandestino. Fechei o banco com o cuidado de quem oculta provas comprometedoras e segui viagem. As ruas ainda meio sonolentas deram-me passagem cúmplice. Cada semáforo parecia piscar-me o olho, como se reconhecesse a natureza secreta da missão. Não transportava contrabando de tabaco ou de café, como nos velhos tempos da fronteira, mas sim tecnologia de jardinagem de última geração — o que, convenhamos, dá muito menos glamour à coisa. Ch...