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A Vision fardada

7 setembro 2025
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Fui a Esposende de carro. Sim, de carro — e logo aí o passeio começou com um travo de tristeza. A minha Honda ficou em casa, esquecida na entrada, como quem perde um lugar à mesa. Mas à beira-rio, no passeio largo e cheio de vento, encontrei uma parente dela. Não tinha liberdade no olhar nem escapadelas no destino. Trazia uniforme: mala dos CTT, número de frota colado na frente, e o peso de muitas cartas às costas. Era uma Vision também, mas fardada. Uma Vision de serviço. Pensei: que diferença entre a minha e esta! A minha corre comigo pelas ruas sem obrigação de horário; leva-me ao trabalho, mas também ao nada — ao café sem pressa, ao regresso pela curva mais bonita, ao desvio sem justificação. A dos CTT carrega envelopes, encomendas, boletins, notícias boas e más. É a ponte que nunca falha, a presença invisível que costura a rotina dos outros. E no entanto, olhando bem, percebi que partilhamos a mesma essência. O mesmo motor que se acende com um toque, o mesmo corpo leve a pedir cur...

Carrinhos nas motas

3 setembro 2025
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Tinha elogiado o Mercadona. Disse que era o único supermercado nas proximidades que reservava lugares para motas, logo à entrada, um exemplo vindo de Espanha. Porém, a história ganhou um rodapé inesperado. Cheguei para umas compras rápidas — cápsulas de ómega 3 e três garrafas de cocktail de maracujá. Não estive lá mais do que dez minutos. Mas bastou: os três lugares destinados às motas estavam ocupados por carrinhos de compras, bem alinhados, oito de uma vez, como se fosse um mini-armazém. Estacionei mal, junto à entrada, ao lado dos carros elétricos. A razão estava comigo. Subi o tapete rolante e, logo na caixa, pedi: — Boa tarde, a quem devo solicitar o Livro de Reclamações? Chamaram a gerente. Veio com pressa, e após lhe mostrar a fotografia a primeira reação foi a de culpar os clientes, como se alguém fosse às compras com oito carrinhos encaixados uns nos outros. Ripostei. O segurança aproximou-se, diplomático, ofereceu-se para ajudar a libertar o espaço e ainda soltou um sorriso...

No rasto do sorriso

1 setembro 2025
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Eu e a Vision partimos em direção a Lomar, num dia quente, mas com vento agradável, que agitava a roupa, a pele e os pensamentos. O trânsito estava presente, mas nada que atrapalhasse a viagem; fluía com a leveza de quem percorre ruas conhecidas. Ver outros motociclistas na estrada é sempre uma alegria — um contraste reconfortante com o silêncio do inverno e mais uma desculpa para sair de casa e sentir a estrada sob rodas. Chegámos junto à casa de um colega, onde a recolha do equipamento do Sporting Clube de Braga, personalizado para o meu enteado, aconteceu em total descontração: calções, chinelos, esplanada às moscas. O calor convidava a pouco mais que bebidas frescas, ambientes climatizados e água de praia fluvial. No banco da Vision, o vermelho e branco do equipamento fundia-se naturalmente com o brilho da mota, como se tivesse sempre pertencido ali. O sol transformava cada superfície numa presença quase tátil — o asfalto escaldante sob a Vision lembrava-me a força do verão, intens...

Contrabando verde numa mula urbana

29 agosto 2025
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A manhã ainda mal tinha acordado e já eu recebia uma chamada de emergência. Não era do trabalho, não era dos bombeiros, nem sequer da farmácia de serviço. Era da minha mulher, em plena missão de jardinagem, aflita por se ter esquecido dos carregadores das baterias dos corta-relvas. Sem eles, a manhã corria o risco de ficar irremediavelmente perdida — e eu, inevitavelmente convocado. Lá fui então, com a Vision a postos. O banco abriu-se como a barriga de um contrabandista, engolindo os dois carregadores de lítio como se fossem barras de ouro em trânsito clandestino. Fechei o banco com o cuidado de quem oculta provas comprometedoras e segui viagem. As ruas ainda meio sonolentas deram-me passagem cúmplice. Cada semáforo parecia piscar-me o olho, como se reconhecesse a natureza secreta da missão. Não transportava contrabando de tabaco ou de café, como nos velhos tempos da fronteira, mas sim tecnologia de jardinagem de última geração — o que, convenhamos, dá muito menos glamour à coisa. Ch...

Do café curto ao longo

26 agosto 2025
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Encomendei café online . O plano era simples: escolher o ponto de recolha mais próximo de casa, 650 metros apenas. Fácil: quase podia ir a pé. Mas o universo tem sempre gosto em baralhar itinerários, e um telefonema dos CTT fez a magia: o café afinal iria parar a uma papelaria no centro da cidade. Quase quatro quilómetros de distância. O que era para ser um café curto tornou-se numa expedição. Com 34 graus em Braga, não saio de casa por pouca coisa. Mas aqui estava a desculpa perfeita: se o café me acorda por dentro, a Vision desperta-me por fora. Ligo-a e de repente o bafo quente da rua fica esquecido mal o vento me percorre o corpo. A viagem foi tranquila, sem nada para contar. Mas deu para reparar que não era o único louco a circular dentro de um forno. Outros motociclistas cruzavam-se comigo, cada um a justificar à sua maneira o calor. Somos uma estranha confraria: uns vão pelo prazer, outros por necessidade. Eu ia pelo café. Chegado à papelaria, nada de lugares livres. Tudo ocupad...

Entre entregas

24 agosto 2025
A mochila amarela encostada à parede ainda carrega o cheiro do último pedido. Lá dentro, um telemóvel vibra. Não é um cliente, não é um restaurante — é um texto meu que se abre entre notificações e mapas. Um estafeta contou-me isto num intervalo qualquer, desses em que o tempo se estica entre pedidos. Disse-me que, às vezes, estaciona a mota num canto discreto, tira o capacete e lê este blogue. No meio do trânsito, dos toques de campainha e das rotas apressadas, encontra uns minutos para ficar parado, só com as palavras. Penso nele a deslizar pelas ruas de Braga, o vento a empurrar-lhe a t-shirt , a mochila a balançar. Talvez um dia passe por mim sem saber. Talvez a minha mota e a dele se cruzem num semáforo qualquer, cada um com o seu destino. Há quem transporte comida, há quem transporte textos. E há quem, no intervalo de um, se alimente do outro.

O capacete e o resto

21 agosto 2025
Na scooter , a roupa é quase sempre casual. Calças de ganga, camisa, vestido, blazer, calções, t-shirt — tudo cabe. Em Itália, vi que era também muitas vezes roupa formal. O capacete, sim, é obrigatório; o resto, opcional. E, curiosamente, parece desculpável. Ninguém estranha ver um condutor de scooter de sapatos de vela, ou uma passageira de sandálias finas. É parte do código não escrito: duas rodas, mas sem armadura. Nas motas grandes, a falta de casaco com proteções parece descuido. Na scooter , é estilo. Talvez por ela ser mais baixa, mais doméstica, mais próxima da bicicleta do que da superbike . Talvez porque o seu território natural sejam ruas curtas e velocidades modestas, onde o risco se disfarça em rotundas e passadeiras. É uma liberdade que se paga. O vento frio não pergunta se vai para o trabalho ou para o café; a chuva não respeita a pressa. Mas há um certo prazer em sentir a cidade assim, de corpo aberto, como se o asfalto fosse apenas mais uma rua da nossa vida a pé — ...

Do fumo das serras ao coração da cidade

18 agosto 2025
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Carreguei a Vision até ao limite. Baú cheio, plataforma cheia: nem mais uma barra ou bebida energética caberia. Arranquei pela variante sul da cidade como quem carrega o mundo inteiro. Não era urgência: era ansiedade. Ansiedade boa, de quem leva algo pequeno mas sente que vai inteiro. Cada curva aproximava a minha pequena máquina de um quartel onde o fumo das serras se traduz em noites sem dormir. À entrada hesitei. Telefonei antes de avançar. Do outro lado reconheceram-me e as barreiras subiram, como se também elas soubessem ao que vinha. A tranquilidade era enganadora: ambulâncias a entrar e a sair, o briefing dos operacionais a decorrer. Até que o comandante surgiu de mão estendida, firme. Foi ele próprio a carregar o saco das bebidas energéticas que eu e a Vision transportámos, chamando uma bombeira para levar as caixas das barras energéticas. E ali percebi: até o gesto mais simples pode pesar como ouro e ganhar corpo quando é partilhado. Mostrei-lhe como tudo coubera na mota, fei...

De capacete e coração

18 agosto 2025
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Braga parecia outra cidade. Ruas espessas, engarrafamentos que engoliam tempo, acidentes a salpicar o mapa urbano. Condutores distraídos espreitavam a desgraça alheia, abrandando para medir o drama. Entre sirenes e buzinas, eu tinha uma missão urgente: levar à minha sogra a morfina que o hospital não podia fornecer. O dia começou cedo. Saco térmico no baú, água fresca, mantimentos. Um casaco para o frio artificial das enfermarias. Idas e voltas para cuidar do meu enteado, também hospitalizado. Cada minuto contava; cada gesto pesava. No fim da tarde, a farmácia era o destino. Uma hora, curta e decisiva, entre a chegada da encomenda e a hora do fecho do internamento. Saí com um embrulho pequeno, selado, leve — mas carregado de urgência. Selos de morfina numa mão, capacete na outra. A Vision cortou as brechas do trânsito como uma flecha no mapa torto da cidade. Carregou no baú o que o hospital não podia dar e levou às mãos certas um alívio imediato. Cada sinal fechado, cada curva, cada bu...

Entre o poço e o asfalto: 1,8 km de terapia

15 agosto 2025
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Dizem que para desligar a cabeça é preciso ir para longe. Mas há viagens que não precisam de mapas, nem de quilómetros para se sentirem longas. São 1,8 km que me separam de um pedaço de terra onde a água sai fresca do poço e onde o tempo corre devagar, entre regas e sombra. A minha mulher costuma chegar primeiro. Já anda entre árvores de fruto, tomates, beringelas, feijões e batata-doce quando eu apareço, lentamente, ao ritmo da brisa que a Vision me dá. É um caminho breve, mas que sabe a estrada aberta, com o sol a recortar as folhas e o cheiro da terra seca a anunciar a estação, com a promessa de voltar com algo bom no baú. Regar ali não é um dever — é uma terapia. Entre o barulho fresco da água a cair como um alívio, o canto dos pássaros, os insetos a dançar no ar, o comboio a cortar o silêncio e os sinos da igreja da Aveleda a marcarem o compasso, tudo lembra que o mundo continua a girar. E faz sentir que, mesmo não sendo nosso, o lugar nos pertence no instante em que estamos nele....

Da Praia do Magoito à Avenida Central

11 agosto 2025
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Nasci no antigo hospital de Sintra, com vista para a serra. Cresci entre o nevoeiro e os palácios, as ruelas inclinadas e as hortas dos arredores, os chalés com nomes poéticos e os elétricos vermelhos e brancos a caminho da Praia das Maçãs. Era ali que tudo começava: o namoro com o mar, a descoberta da beleza, a certeza de que o mundo podia ser encantado. Foi nessa terra que vivi a juventude, andei na escola, tive as primeiras namoradas e arranjei o primeiro emprego. Tudo com a serra por perto — ora companheira de silêncio, ora cúmplice de devaneios. Nada, ou muito pouco, tem a ver com Braga. A cidade que hoje me acolhe é outra — mais norte, mais pedra, mais pragmática talvez. Mas é aqui que vivo as minhas experiências com a Vision 110. E é sobre isso que escrevo. Lá em casa, as motas nunca foram estranhas. Os meus pais sempre foram grandes amantes das duas rodas. O meu pai ainda hoje fala da sua Honda CB 250 como se tivesse sido o primeiro grande amor da vida dele — descreve o som do ...

Do semáforo ao voto: os motociclistas e a cidade

10 agosto 2025
Em outubro, Braga escolhe novo presidente. E vereadores, e assembleia, e juntas, e tudo aquilo que parece muito longe — até ao dia em que falta uma passadeira, um lugar para estacionar, ou um buraco na estrada manda-nos ao chão. E nós, os que andamos de mota, onde estamos nessas escolhas? Por isso, decidi escrever às candidaturas que concorrem a Braga. Quero saber o que propõem aos motociclistas: nos acessos, nos estacionamentos, na segurança, nas regras que tantas vezes nos esquecem. A pergunta será simples, e igual para todos. As respostas — se vierem — não terão lugar num debate, mas aqui, neste asfalto de palavras onde a minha Honda gosta de passear. Haverá espaço para o que dizem, para o que não dizem, e para o que a cidade vai dizendo também, enquanto se prepara para votar. Até lá, continuo a circular. Com cautela, com esperança, e com uma buzina discreta que talvez sirva, também, para lembrar que existimos.

Não sou bicicleta, mas também não mordo

8 agosto 2025
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Era só um saco de terra vegetal e um regador. Uma missão pequena, de verão, à Leroy Merlin de Braga. Nada que pedisse marcha atrás ou rota de GPS. A Vision e eu — dupla afinada — chegámos com o sol ainda por cima das prateleiras de toldos e mangueiras. À entrada da loja, reparei num espaço pintado de azul. Um rectângulo no chão, com um boneco de bicicleta e outro... diferente. Tinha mais corpo, mais espelho, mais escape. Diria até: mais atitude. Como quem diz: "não sou pedal, mas também não sou cavalo." Ao lado, um sinal vertical — branco, limpinho — anunciava "Parque bicicletas". Só bicicletas. Nenhuma menção a motas, a scooters , nem sequer a trotinetes mais ambiciosas. Fiquei ali parado, à sombra do poste, feito adolescente à porta de um clube onde os símbolos decidem quem entra. No chão, pareço incluído. No poste, sou excluído. No código da estrada? Nem uma coisa nem outra. Nem o chão nem o poste sabem ao certo quem sou — ciclista de motor, andarilho de 110cc, i...

A picada e a picanha

6 agosto 2025
Já andava a dizer à minha mulher que devíamos experimentar a picanha de um restaurante de Sequeira. Hoje, finalmente, deu-se o momento. Propôs-me que fosse buscar dose e meia — o que, traduzido do dialeto doméstico, significa: “traz a mais, que se sobrar fica para amanhã.” Levei. O céu estava coberto de fumo vindo dos incêndios. Não se via sol, mas sentia-se bem: Braga ia nos 40 graus, talvez mais. A certa altura, já não sabia se estava a viver numa cidade do Minho ou numa versão low-cost do Saara. E lá fui eu, todo contente, rumo ao vale de Sequeira, debaixo daquele bafo, buscar picanha e uma garrafa de vinho branco fresquinho. A Vision, coitada, lá aguentava a torreira sem se queixar. Eu idem. O que ninguém contava nesta história foi a vespa. O inseto. Que me espetou o ferrão no pescoço a meio do caminho, como se me dissesse: “Almoço? Também quero.” Ainda olhei de esguelha para ver se não era uma Vespa, a scooter , a tentar marcar território. Noutras vidas já teria ficado com o pesc...

Esta mota também faz compras

4 agosto 2025
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O Continente Bom Dia é o supermercado mais próximo da minha casa. É também o lugar onde deixo parte do meu salário e, não raro, o odor da gasolina ainda quente quando encosto a Vision junto aos carrinhos. Mas não há lugar para ela. Literalmente. A minha mota, como tantas outras, é invisível no desenho do parque. Não há sombra, nem traço, nem sinal que diga: aqui cabe um corpo leve de duas rodas. No dia 29 de junho escrevi-lhes um e-mail . Educado, curto. Pedi-lhes um pequeno gesto: um espaço reservado para motas, com sombra. Não pedi alcatifa nem carregadores USB. Só um abrigo modesto, como os que já existem noutros supermercados — no Mercadona , por exemplo, onde os motociclistas não são tratados como intrusos no passeio. A resposta chegou rápida, com referência e tudo. Um número bonito: 89153933. Disseram que iam analisar, que a sugestão ia seguir para quem decide. Esperei. Esperei como quem estaciona ao sol e vê os espelhos a ferver. Um mês depois, decidi perguntar se havia novidade...

Primeira revisão: café, óleo e boas mãos

2 agosto 2025
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A Vision chegou à sua primeira revisão com 1184 km — e uma certa altivez urbana. Quase a piscar-me o olho, como quem diz: “Está na hora, trata-me bem.” Tinha contactado por email para tentar registar o momento em fotografia. Durante dias, nada. Silêncio. Mas ao chegar à Motoveiga , o ambiente era outro: o responsável pela oficina já estava informado e deu-me luz verde para entrar na área técnica, com total liberdade para fotografar. Sem complicações. A cortesia que não veio por escrito chegou, afinal, pelo gesto. Vi a minha scooter subir para a plataforma elevatória. A suspensão dianteira cedeu ligeiramente com o movimento, como se a Vision também estivesse curiosa com o que aí vinha. O mecânico tratava da máquina com aqueles gestos automáticos de quem já fez isto mil vezes, mas sem pressa — como quem sabe que há alguém a ver e a confiar. A dada altura, o óleo escuro começou a escorrer para o recipiente, quente e já com histórias dentro. Foi substituído pelo Repsol 10W30 Smarter HMEO...

Um lençol contra o sol

31 julho 2025
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À porta do meu trabalho, três motas partilham o calor do mesmo cimento. Uma Monkey azul de catálogo — reluzente, rara, imóvel como um enfeite de vitrina. Uma Peugeot vermelha, a minha ex-companheira , agora nas mãos do Marcos. Está sempre ao sol, impávida, talvez com saudades minhas ou simplesmente indiferente à passagem do tempo. E depois há a minha Vision. Não é uma mota de pose. É uma mota de rota. E como todas as coisas que realmente usamos, também ela precisa de cuidados práticos — não de luxos. Por isso, todas as manhãs, antes de entrar no edifício onde passo o dia, monto-lhe uma espécie de tenda. Um velho lençol às riscas, preso com molas da roupa, que improvisa uma sombra onde não há telhado. À distância, talvez pareça um estendal ambulante. Uma barraca de praia em descanso. Ou até um fantasma de verão, branco às riscas, a assombrar o parque de estacionamento. Ou será uma caravana do deserto? Mas a verdade é que, entre as três motas, a minha é a única com direito a sombra. Pode...

Missão: cenouras e anti-ervas

28 julho 2025
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Na sexta-feira ao jantar, a minha mulher disse apenas: — Preciso de cenouras. Assim mesmo, sem verbos auxiliares nem explicações. Um enunciado flutuante, deixado no ar como quem não quer nada — ou como quem quer tudo. Não me disse que fosse eu. Não disse para ser já. Limitou-se a semear a frase, como quem atira migalhas ao caminho de um pardal que se finge distraído. Ora, esse pardal era eu. E mal ouvi “cenouras”, os meus olhos brilharam como faróis baixos num entardecer doméstico. Havia ali uma janela de oportunidade. Um pequeno corredor de liberdade com destino à mercearia, ao comando da minha Vision. Fingi ponderar, fingi protestar, mas lá fui. A culpa era das cenouras. Claro! No sábado, repetiu-se o milagre, mas com menos romantismo e mais eficácia: — Preciso que vás comprar um material de jardinagem para o meu trabalho de amanhã. Assim não preciso de sair e ganho tempo. Disse isto com ar profissional, como se me estivesse a delegar uma função vital da ONU. Mas eu percebi. Era a se...

Estafeta de mim mesmo

26 julho 2025
Fim de semana em modo caseiro. O sol espreita, a mota chama, e a vontade de sair é tanta que até as árvores dos vizinhos parecem estar a provocar. Não para ir trabalhar nem para caminhar, como os normais. A ideia era nobre, estratégica… quase poética. Eu precisava de um motivo credível para andar de mota. Resultado? Pedi à minha enteada que me encomendasse uma mochila de estafeta, daquelas à Glovo, com o único objetivo de criar um motivo para sair de casa com a Vision. Não, não vou fazer entregas. Vou buscar jantares e compras… com estilo. Chegou o momento, amigos. Um homem, uma mota… e um plano absolutamente genial. Ou desesperado. Ainda não decidi. Sim, meus caros… uma mochila. Mas não uma mochila qualquer. Uma que dissesse: “Estou ocupado. Estou em missão. Transporto calor e felicidade em caixas de piza.” Tudo começou na tarde do passado domingo, daquelas em que o sofá te cola à vida com tanta força que te esqueces do que é ter joelhos. Senti o apelo da estrada — não aquele épico, c...

Preciso de… pão (ou não)

23 julho 2025
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Domingo à tarde. A casa está calma, quase a flutuar naquele limbo entre o almoço e o jantar, onde o tempo parece que se espreguiça no sofá. A minha mulher está no modo zen, de pantufas nos pés e telemóvel na mão, a navegar entre reels e receitas de salmão no forno com crosta de amêndoa. Eu, por outro lado, estou num conflito interno digno de uma tragédia grega. Quero — não, preciso — sair de mota. Nem que seja só até à rotunda. Nem que seja só para ouvir o motor a suspirar sob o meu comando. Mas como justificar isso? “Preciso de gasolina.” Não pega. Enchi o depósito há dois dias. “A farmácia!” Também não. Estamos abastecidos até à próxima pandemia. “Vou ao supermercado buscar pão.” Possível… mas temos pão. “Vou só dar uma volta para arejar a cabeça.” Altamente suspeito. A cabeça está perfeitamente arejada (ou talvez demasiado…). Penso. Reflito. Finjo estar a ler as notícias no computador, mas na verdade, estou a construir o argumento perfeito. Algo entre o dramático e o convincente, c...