Mensagens

A promessa do sol de inverno

9 dezembro 2025
Imagem
A rotina semanal só se torna suportável porque a Vision me leva e traz, fiel, mesmo quando o céu decide desabar sem aviso. Há dias em que a chuva parece ter sido contratada a tempo inteiro, como se alguém tivesse decretado que a água faz parte obrigatória do trajeto. Ainda assim, seguimos. O motor acorda, eu desperto com ele, e juntos abrimos caminho por ruas brilhantes de água. Mas, quando por milagre o sol aparece, mal o tocamos: um raio breve na hora de almoço, outro a cortar o regresso ao trabalho. É tudo. Vivemos encolhidos dentro do outono, e o inverno aproxima-se com aquele jeito de quem não pede licença. O direito à luz vai-nos sendo retirado aos poucos — à saída já é noite profunda, e a viagem de volta faz-se apenas com a coragem dos faróis da Vision e a claridade fria da iluminação pública, que pinta tudo num amarelo que não aquece. Ao fim de semana, devíamos respirar. Mas o céu, ciumento, fecha-se de novo. A chuva regressa como se tivesse saudades nossas. E o mais curioso é ...

Expulsa da garagem (II)

8 dezembro 2025
Imagem
A Vision voltou a ser expulsa da garagem. O portão que antes se fechava atrás dela agora serve-lhe de fundo, e o patamar da entrada transformou-se no seu novo pouso — um espaço improvisado, mas estranhamente mais prático para chegadas e partidas. Ao meio-dia, quando a deixei ali, tudo pareceu fazer sentido: terreno plano, sem curvas caprichosas, sem a coreografia apertada da garagem cheia de vida, de tralha e de pequenos perigos invisíveis. E ao final da tarde, havia um detalhe novo: uma carpete. Não uma carpete qualquer, mas uma que alguém estendera exatamente no sítio onde eu tinha deixado a mota, como quem prepara um lugar de honra. A minha enteada, com ar de quem revela uma evidência, disse logo que era para eu estacionar ali. Eu fiquei a olhar para aquilo, meio desconfiado, meio a rir-me por dentro. Acabei por telefonar à minha mulher, só para confirmar que não estava a interpretar mal o mobiliário — que me confirmou de forma desarmante: que podia estacionar ali, a menos que não m...

A Minha Honda vai ao Japão (ou quase)

5 dezembro 2025
Imagem
Acordei com um e-mail da Honda. Pensei que fosse mais uma newsletter qualquer, daquelas que falam em revisões, novos modelos e campanhas que nunca são para a minha carteira. Ou que fosse o pessoal do marketing a sugerir-me mais uma colaboração para as redes sociais da marca. Mas não. O assunto dizia apenas: “Daniel, temos uma proposta.” Abri meio a medo, meio a rir sozinho, porque ainda não tinha tomado café e o cérebro gosta de inventar entusiasmo à toa. Mas estava lá tudo, preto no branco: uma viagem ao Japão, para duas pessoas, tudo incluído. Motivo? O blogue. O meu blogue. Aquele que nasceu num domingo de tédio, num impulso de achar que talvez valesse a pena escrever sobre os meus pequenos percursos pela cidade. Viraram-me as mãos. Assim, sem aviso. Fui mostrar à minha mulher. Ela, que não gosta de motas, leu aquilo com sobrancelhas semicerradas — sinal de que estava a avaliar se isto era mesmo real ou mais uma das minhas leituras emocionais erradas. — Isto é a sério? — Acho que...

O pequeníssimo furo

1 dezembro 2025
Imagem
Saí de casa cedo, num desses sábados que ainda não decidiram se vão ser apenas nublados ou chuvosos. A estrada estava quieta, e a minha Vision — mesmo a perder ar há dias — parecia contente por alongar as pernas até à MotoVeiga. Quando cheguei, os portões ainda estavam fechados, mas já havia um cliente à porta, à espera. Há uma camaradagem muda em quem madruga por uma mota — e isso é sempre familiar. Pouco depois apareceu o Luís, que nos abriu os portões com um “bom dia” tão convicto que quase empurrou o sol para cima do céu. Entrei com a Vision, expliquei-lhe o que se passava com o pneu traseiro e, enquanto ele tratava do registo, subi ao andar de cima — começa a ser rotina, esta pequena subida sempre que a Vision precisa de atenção. Gosto daquele piso superior. Tem vendedores, escritório, boutique, e uma energia que mistura o cheiro a café com o brilho dos modelos expostos. Cumprimentei o Sr. Manuel, o patrão, que me devolveu o sorriso animado de quem reconhece uma cara que apareceu ...

Sementes

29 novembro 2025
Imagem
Eu uso porta-chaves como sementes. Dou a quem simpático se apresenta na minha vida, a quem se cruza comigo num corredor de loja ou na rua sem saber que, naquele instante, me está a regar o dia. A maioria das pessoas fica primeiro surpreendida. Um reflexo breve nos olhos — “é para mim?” — como se a cidade já não tivesse o hábito de oferecer nada que não traga código QR ou prazo de validade. Depois, quase sempre, surge um sorriso que não estava previsto na lista de compras. E eu fico com a sensação de que, naquele pequeníssimo intervalo, fiz qualquer coisa parecida com plantar. Não é publicidade. É só uma vontade de devolver o que a Vision me dá todos os dias: esta leveza de circular, de parar, de reparar. De ver um gesto e não o deixar passar. Há quem ande com moedas no bolso para o estacionamento. Eu ando com porta-chaves na minha bolsa ao ombro. E, quando sinto que alguém merece a pequena surpresa, deixo cair um nas mãos dessa pessoa — como quem oferece uma flor improvável, sem perfum...

Ao ombro

26 novembro 2025
Imagem
Há quem leve o mundo nas costas. Eu levo-o ao ombro. Dentro desta bolsa cabe o essencial: a carteira, o telemóvel, um par de chaves e, às vezes, o silêncio. É leve o suficiente para a esquecer, mas está sempre lá — a lembrar-me que a liberdade também se organiza em fechos e bolsos. Não é uma mala de viagem. É uma companheira urbana. Vai comigo em dias de sol e de chuva, por ruas estreitas e avenidas largas, entre cafés e cruzamentos, entre lugares onde se fica e outros onde se passa apenas. Quando me sento numa esplanada, pouso-a na mesa — como quem pousa uma parte de si que não precisa de estar sempre em movimento. Na aba lê-se “A Minha Honda”. Se alguém reparar e perguntar direi que é o nome de um blogue, ou talvez de uma maneira de andar — devagar, atento, com gosto em chegar, mesmo quando o destino é só mais um ponto na rotina. A bolsa é, de certo modo, a versão civil da mota. Com ela, deslizo pelas ruas a pé, atravesso passadeiras, paro em semáforos — tudo igual, só mais lento. A ...

O poder dos sonhos

23 novembro 2025
Imagem
A minha mesa de cabeceira está cada vez mais confusa. Não pelo caos — que é pouco — mas pela estranha convivência que tem acontecido ali: o relógio que insiste em lembrar-me que já passa das dez, a garrafa com o logótipo do blogue que mora sempre ali, e aquela luminária Honda que acende o quarto com a mesma convicção com que uma criança acende uma lanterna debaixo dos lençóis para continuar a ler. Não é uma instalação improvisada — é intencional. Uma pequena arquitetura nocturna pensada para dar luz sem a ferir, uma claridade doméstica que me deixa ver o quarto sem me arrancar ao descanso. Às vezes, antes de adormecer, fico a olhar para a asa luminosa. Há quem se entretenha com néons de bar, eu tenho uma luminária da Honda. Dizem que é a marca do “poder dos sonhos”. Eu, que nunca dei grande importância a slogans, começo a perceber que há frases que só se revelam quando caem no sítio certo — geralmente ao lado da almofada. Porque ali, naquela fronteira entre vigiar e adormecer, é quando...

Escuro, frio e liberdade

20 novembro 2025
A minha mulher foi deixar a carrinha da jardinagem na oficina. Deixou-a, voltou para casa… e trouxe consigo as chaves e os documentos que era suposto terem ficado lá. Quando cheguei do trabalho, de Vision, já a contar com um banho quente e demorado, o telemóvel tocou. Era ela, com aquela urgência que nasce sempre do lado de quem percebe o erro tarde demais. Pediu-me que fosse de mota até à oficina, antes de fecharem, para entregar o que faltava. Nada de dramas. Sem contrariedades. A noite já ia escura como breu, a temperatura a cair rápido, mas a pressa era de outra ordem: chegar a tempo. Pelo caminho fui cortando pelo trânsito como quem atravessa uma sala cheia, pedindo licença só com o olhar. A Vision respondeu sem hesitações — apenas mecânica bem afinada, a cumprir a promessa de ser leve onde tudo o resto parece pesado. Sempre firme, leve e cúmplice. Quando cheguei à oficina, pronto para encontrar portas quase a fechar, dei de caras com… serenidade. Funcionários a passo lento, conve...

O pano da gasolina

17 novembro 2025
Imagem
Não é um pano qualquer. É o pano da gasolina. Fica na garagem, à espera do momento certo — aquele intervalo entre chuvas em que o céu parece fiar-se, e eu aproveito para lhe dar uma lavagem rápida de mangueira. Nada de detergentes nem esponjas especiais. Só água. A seguir, o pano faz o resto: passa, seca, torce, volta a passar. O cheiro a gasolina nunca lhe saiu completamente — talvez por isso funcione melhor do que qualquer produto de limpeza. Não é vaidade, é hábito. Uma espécie de conversa silenciosa entre mim e a mota. Ela perde o peso da lama, eu ganho uns minutos de calma. Já me perguntaram se a mota está sempre a sair do stand. Sorri e não expliquei. Há brilhos que não vêm do polimento — vêm do tempo que se dá às coisas. Depois volto a torcer o pano e deixo-o ali, pendurado, à espera da próxima pausa entre chuvas.

As marcas da chuva

13 novembro 2025
Imagem
Hoje disseram-me, com ironia, que estava um bom dia para andar de mota. Chovia a sério — não era chuva miúda, era água grossa, decidida, a cair em diagonais. O tipo de chuva que faz pensar duas vezes antes de sair, e uma terceira antes de parar. Sorri, claro. Porque a mota não pergunta pelo tempo, e há dias em que o corpo vai, mesmo que o céu diga que não. A estrada ganha reflexos novos, os carros levantam cortinas de água, e cada travagem é um pequeno ato de fé. Ainda assim, há uma certa limpeza nisto: o mundo reduzido ao som da chuva e ao motor constante a rasgar o cinzento. Tenho-a lavado menos, é verdade. Mas também, para quê? Com semanas assim, a limpeza dura pouco e o brilho evapora antes de secar. Mais vale deixá-la estar — marcada, honesta, pronta para o que vier. A Vision traz no corpo o mapa dos últimos dias: ruas molhadas, desvios rápidos, travagens cuidadas. Cada mancha é uma lembrança: passei por ali, cheguei, voltei. E amanhã, se chover outra vez, que venha — há marcas qu...

A mercearia da dona Cila

10 novembro 2025
Imagem
Anoitece cedo, com a hora de inverno e os dias cada vez mais curtos. As idas à mercearia perto de casa são deliciosas. É uma viagem breve, mas o pretexto ideal para tirar a Vision da garagem. E depois há a dona Ercília Ferreira — a dona Cila — que tem sempre assunto e conversa para mim, e um lugar vago à porta para a minha Vision. Podia pensar-se que uma mercearia de bairro serviria apenas para compras rápidas. Acontece o contrário: aqui as compras são sempre demoradas. A tertúlia instala-se com naturalidade. O estacionamento é complicado para os carros, mas não para a Vision, que entra no espaço com a complacência da dona Cila. Muitas vezes é ela própria a puxar de um saco para facilitar o transporte e a trazê-lo até à mota. O assunto da conversa é sempre uma incógnita. Não é como no barbeiro, onde o futebol surge invariavelmente; aqui é sempre uma surpresa. E depois, não há nada como o comércio tradicional para um atendimento próximo — aquele tempo disponível para parar e conversar, ...

O leitor mais antigo

7 novembro 2025
Imagem
Fui levar umas lembranças do blogue a um leitor. Provavelmente o mais antigo de todos — alguém que já foi meu cunhado, mas com quem nunca perdi o contacto. Estava fora, mas passei por casa dele e deixei o pequeno embrulho na caixa do correio. Só depois lhe enviei uma mensagem — o gesto já lá estava. A manhã estava nublada, daquelas em que o outono já não se anuncia — está mesmo ali, na aragem e no brilho da estrada molhada. O caminho até lá faz-se por entre árvores que ainda pingam da noite anterior, com o verde a escurecer na encosta e o cheiro a folhas húmidas a colar-se ao ar. Perto do destino, a paisagem abre-se em campos cultivados, onde a calma parece mais antiga do que o próprio tempo. A Vision parecia gostar do silêncio: pouca gente, pouco trânsito, só o barulho da água a ser cortada pelas rodas. No regresso, dei-lhe uma lavagem rápida. Tinha lama junto às rodas e pequenas marcas de chuva secas pelo corpo. Passei-lhe um pano e ela voltou à garagem — depois de uns dias de exílio...

Aquecimento

4 novembro 2025
Imagem
A noite desce fria, e a Vision dorme à porta, embrulhada num silêncio de lona. O frio encosta-se-lhe aos contornos como quem testa a resistência. Não há tecto, mas há prontidão — e isso basta. De manhã, o gesto repete-se: primo o botão, o motor desperta sem hesitar, e o ar ainda húmido da madrugada começa a dissolver-se no ronco suave. A estrada faz o resto. O verdadeiro aquecimento não vem do metal, mas do corpo que se entrega ao caminho, do coração que acelera ao compasso da cidade que acorda. Ela parte comigo, fiel ao seu papel: transformar o frio em movimento, e o início de mais um dia em qualquer coisa que ainda parece liberdade.

No mesmo chão

1 novembro 2025
Imagem
À entrada de casa, estavam duas motas. A minha Vision, ainda a recuperar da noite húmida passada ao relento, tinha agora companhia: uma Vision preta, já habitual por aqui, vinda com a colega da minha mulher, que lhe dá uma ajuda nos biscates. As duas ficaram ali, lado a lado, como se combinadas. A vermelha — a minha — de olhar desperto, a preta com um ar mais gasto, já conhecedora do caminho até esta casa. Durante meses fui-a observando, sempre fiel, sempre pronta. Com as perguntas que fui fazendo sobre consumos e fiabilidade, fui-me convencendo de que havia ali qualquer coisa de certo. Talvez por isso tenha acabado por comprar o mesmo modelo — numa versão mais recente, já Euro5+ e com ficha USB: pequenos progressos que a preta não tem. As duas pareciam conversar num silêncio metálico, cúmplices na espera, como passado e presente estacionados no mesmo chão. Olhei para elas e pensei que talvez fosse assim que a minha voltasse a entrar em casa: não pela porta da garagem, mas pelo reconhe...

Expulsa da garagem

29 outubro 2025
Imagem
Foi numa noite húmida, destas em que o ar parece colar-se à pele e à pintura metálica. A minha Vision dormiu debaixo da varanda, expulsa da garagem pela minha mulher. Ali ficou, encostada à parede, entre um vaso de barro e uns restos de fita laranja a dizer beware . A casa já com enfeites de Halloween, e ela, a Vision, a fazer parte da decoração sem querer: o brilho vermelho a refletir a luz do candeeiro, as gotas de chuva como purpurina fora de época. Havia qualquer coisa de dignidade na sua paciência. Enquanto a garagem se enchia novamente de tralha, ela aceitava o exílio com a mesma serenidade de quem já viu piores invernos. A varanda tornara-se um pequeno porto, um limbo entre o lar e a rua. Oito dias antes do Halloween, a minha mota passou a noite disfarçada de estátua. E talvez tenha sido o disfarce mais honesto de todos: imóvel, silenciosa, à espera de voltar a mover o mundo. No fundo, somos parecidos — ela e eu. Também me acontece ser posto de parte quando o quotidiano precisa ...

A vigília silenciosa

27 outubro 2025
Imagem
Há quem durma com a janela entreaberta para ouvir o mar. Eu, às vezes, aguardo pelo sono a espreitar o ecrã — a minha janela digital para a garagem. Lá está ela, imóvel, tranquila, como se o tempo tivesse parado ao redor. A câmara cumpre o seu papel: vigia. Mas eu, do outro lado, não vigio tanto a segurança — é mais o sossego. De dia, a imagem é nítida, colorida, quase banal — um retrato realista do repouso. À noite, porém, tudo se transforma. A visão noturna entra em cena e o mundo encolhe para duas cores: preto e branco. O refletor parece aceso, mas não está. É apenas o reflexo dos infravermelhos — o olhar mecânico da câmara a inventar uma presença. Há algo de comovente nessa inversão: a câmara desperta, o motor adormecido, e eu algures entre ambos — a meio caminho entre a ternura e a paranoia. Às vezes, abro a aplicação sem saber bem porquê. Não é desconfiança — é saudade. Há dias em que não ando com ela, e o simples gesto de a ver ali, no ecrã, basta-me. Como se olhar fosse quase m...

Uma guerreira em outubro

25 outubro 2025
Imagem
A semana foi de chuva intensa — um ensaio geral para o inverno que se aproxima depressa. As estradas tornaram-se mais silenciosas, desertas de motas. A minha Vision, quando lá está, parece sempre em minoria: um ponto vermelho entre um mar de carros cinzentos, como se a cidade tivesse perdido a coragem de se molhar. Em pleno outubro, trato das prendas de Natal. Este ano decidi fazê-lo com tempo, sem correrias nem centros comerciais a rebentar pelas costuras. Tudo online , tudo sem pressa. Mas há um prazer que o ecrã não substitui: o momento em que saio do trabalho e vou buscar as encomendas. Uma pequena travessia até um ponto de entrega — e já isso basta para sentir o mundo outra vez. A chuva muda tudo. O asfalto ganha reflexos, as folhas colam-se ao chão, o ar tem cheiro de ferro e terra. Há uma serenidade que só existe quando o mundo abranda. Mesmo sozinha, num parque de carros imóveis, a Vision parece em casa. Uma guerreira discreta que, entre pingos e faróis, continua ali: vermelha,...

Castanhas à altura

22 outubro 2025
Imagem
Saí num dia de transição. O outono ainda se mostrava solarengo, com um calor tardio que confunde as folhas. No andamento da Vision, o vento vem ao meu encontro — fresco, limpo, e com aquele aroma seco que anuncia mudança. O caminho mais curto talvez fosse o mais rural, a contornar a cidade. Mas preferi o misto: o urbano com sabor a campo. Desço a Rua de Caires, subo Andrade Corvo, passo diante do Arco da Porta Nova e espero o sinal verde nos Biscaínhos. A cidade gira comigo. Sigo pela Variante de Real e, já em Frossos, viro para Mire de Tibães — onde o cimento cede lugar às árvores e os muros voltam a ser de pedra. A minha mulher? Encontrei-a no final da manhã, a trocar a roçadoura pelo balcão. O almoço esperava-nos. Falámos, claro, de castanhas — as que ela apanhara de manhã, e as que eu ajudaria a apanhar de tarde. Eram gordas, lisas, quase perfeitas, daquelas que parecem escolhidas para fotografia de catálogo. Mas estas eram nossas, colhidas com o vento a levantar folhas e a fazer t...

Um cipreste em outono

18 outubro 2025
Imagem
O trajeto fez-se em silêncio, com a serenidade das manhãs de outono que ainda guardam a frescura da noite. A estrada quase deserta, o mundo a recompor-se devagar. Havia no ar um sossego que combina bem com a ideia de votar cedo — antes de o dia se distrair com outras urgências. Cheguei ao pavilhão desportivo poucos minutos depois de abrirem as urnas. À porta, apenas um punhado de pessoas, como se a democracia também precisasse de tempo para acordar. Tem sido sempre ali que voto. Não o associo a desporto, embora tenha formato de ginásio: para mim é uma espécie de santuário laico, onde cada um deposita o que tem de mais íntimo — a escolha. A minha mulher estava na mesa três, já em funções. Vi-a ao longe, concentrada, sem se aperceber da minha presença. Hesitei em aproximar-me. Há deveres que é melhor não interromper, mesmo quando o coração o pede. Segui então para a mesa um, onde o meu nome me costuma colocar. Tudo decorreu com naturalidade, sem filas, sem pressa. Gosto do toque do papel...

Moto-táxi conjugal

14 outubro 2025
Imagem
O carro da minha sogra serve muitas vezes de veículo de substituição — quando outro se avaria ou, por qualquer motivo, não pode circular. Nessas ocasiões, a minha mulher costuma devolver-lho e regressar a casa a pé. Foi então que vi uma oportunidade para mudar o guião. Liguei-lhe como quem não quer a coisa, perguntando se não queria boleia — omitindo, claro, o pormenor de que seria de mota. O domingo estava solarengo, desses que convidam à rua, e a Vision ainda repousava à sombra da garagem. Soava-me a pretexto perfeito para a dupla afinada sair à estrada, não para transportar comida, mas para fazer de moto-táxi familiar. Pelo caminho, uma menina que seguia num carro acenou-me. A Vision é uma mota simpática: não assusta crianças. À chegada, o telemóvel começou a tocar; buzinei, e quando a minha mulher olhou, percebeu logo. Nenhum ar de surpresa — apenas aquele meio sorriso de quem já desconfiava. Enquanto aguardava por ela, pousei os dois capacetes em cima do banco. Quando chegou, pego...