No mesmo chão

À entrada de casa, estavam duas motas.
A minha Vision, ainda a recuperar da noite húmida passada ao relento, tinha agora companhia: uma Vision preta, já habitual por aqui, vinda com a colega da minha mulher, que lhe dá uma ajuda nos biscates.
As duas ficaram ali, lado a lado, como se combinadas. A vermelha — a minha — de olhar desperto, a preta com um ar mais gasto, já conhecedora do caminho até esta casa. Durante meses fui-a observando, sempre fiel, sempre pronta. Com as perguntas que fui fazendo sobre consumos e fiabilidade, fui-me convencendo de que havia ali qualquer coisa de certo. Talvez por isso tenha acabado por comprar o mesmo modelo — numa versão mais recente, já Euro5+ e com ficha USB: pequenos progressos que a preta não tem.
As duas pareciam conversar num silêncio metálico, cúmplices na espera, como passado e presente estacionados no mesmo chão.
Olhei para elas e pensei que talvez fosse assim que a minha voltasse a entrar em casa: não pela porta da garagem, mas pelo reconhecimento. Às vezes, basta aparecer uma igual para que o mundo nos olhe de outra maneira.
As teias de Halloween ainda pendiam à porta, lembrando que o tempo passa e as coisas mudam devagar. E, entre plantas e vasos, duas motas partilhavam o mesmo chão — uma vinda, outra voltada.
Fiquei a vê-las como quem assiste a um reencontro improvável: duas Visions estacionadas na entrada de casa, em paz com o seu papel no mundo. Percebi que, afinal, não era a garagem que faltava — era apenas companhia. Por um instante, pareceu-me que as duas Visions se compreendiam: a que me inspirou e a que agora me leva.