Escuro, frio e liberdade

20 novembro 2025

A minha mulher foi deixar a carrinha da jardinagem na oficina. Deixou-a, voltou para casa… e trouxe consigo as chaves e os documentos que era suposto terem ficado lá. Quando cheguei do trabalho, de Vision, já a contar com um banho quente e demorado, o telemóvel tocou. Era ela, com aquela urgência que nasce sempre do lado de quem percebe o erro tarde demais.

Pediu-me que fosse de mota até à oficina, antes de fecharem, para entregar o que faltava. Nada de dramas. Sem contrariedades. A noite já ia escura como breu, a temperatura a cair rápido, mas a pressa era de outra ordem: chegar a tempo.

Pelo caminho fui cortando pelo trânsito como quem atravessa uma sala cheia, pedindo licença só com o olhar. A Vision respondeu sem hesitações — apenas mecânica bem afinada, a cumprir a promessa de ser leve onde tudo o resto parece pesado. Sempre firme, leve e cúmplice.

Quando cheguei à oficina, pronto para encontrar portas quase a fechar, dei de caras com… serenidade. Funcionários a passo lento, conversas mansas, aquela calma de quem trabalha ao ritmo do relógio. Cumprimentei, entreguei chaves e documentos, e fiz-me ao caminho de regresso.

Optei por um percurso diferente, só para alongar o prazer. Aquelas inclinações nas curvas, o deslizar pelo trânsito, a dança discreta entre o corpo e a estrada — nada épico, mas o suficiente para que a viagem valesse por si. A Vision é isto: anda só comigo, mas nunca me deixa sentir sozinho. E dá-me sempre mais do que peço.

Quando cheguei à rua de casa, o portão automático abriu-se antes de eu sequer tocar no comando. Era a minha mulher, à espera, de vigia, também ela cúmplice. Não gosta de motas, é certo, mas gosta de me ver chegar de mota. Há nisso uma espécie de orgulho silencioso, talvez até surpreso.

Subi as escadas ainda com o corpo quente da viagem, com um sorriso preso no rosto — daqueles que só as crianças costumam ter depois de um balanço mais alto no parque. A minha enteada, de olhar atento, perguntou-me séria:
— O que foi?

Não soube responder. Como explicar que o momento mais divertido do dia tinha acontecido naquela simples ida a uma oficina de automóveis?

Só no banho, já com a água a cair quente sobre mim, percebi até onde esse instante tinha ficado colado. Parecia que ainda estava a acelerar, de novo em cima da Vision, a fazer aquelas curvas. Vinham flashes da estrada, o corpo inclinado, o farol a rasgar o escuro — e o som do motor ainda a roncar cá dentro, como se a viagem não tivesse terminado totalmente.