Expulsa da garagem (II)

A Vision voltou a ser expulsa da garagem. O portão que antes se fechava atrás dela agora serve-lhe de fundo, e o patamar da entrada transformou-se no seu novo pouso — um espaço improvisado, mas estranhamente mais prático para chegadas e partidas. Ao meio-dia, quando a deixei ali, tudo pareceu fazer sentido: terreno plano, sem curvas caprichosas, sem a coreografia apertada da garagem cheia de vida, de tralha e de pequenos perigos invisíveis.
E ao final da tarde, havia um detalhe novo: uma carpete. Não uma carpete qualquer, mas uma que alguém estendera exatamente no sítio onde eu tinha deixado a mota, como quem prepara um lugar de honra. A minha enteada, com ar de quem revela uma evidência, disse logo que era para eu estacionar ali. Eu fiquei a olhar para aquilo, meio desconfiado, meio a rir-me por dentro. Acabei por telefonar à minha mulher, só para confirmar que não estava a interpretar mal o mobiliário — que me confirmou de forma desarmante: que podia estacionar ali, a menos que não me desse jeito.
Dali, a Vision fica voltada para o exterior. As folhas de outono passam-lhe à frente, levadas por rajadas que atravessam o pátio e deixam no ar um rumor breve, como quem conta segredos ao acaso. O movimento da rua desenrola-se a poucos metros: passos apressados, vozes soltas, motas tardias a costurar o silêncio. E quando anoitece, as luzes dos candeeiros refletem-se na pintura vermelha, criando aquele brilho húmido, quase tímido, que só dezembro sabe acender.
As decorações de Natal no beiral completam o quadro. Fios luminosos a cair como chuva paciente, sombras discretas a desenharem-se no chão, e a porta com o portão a enquadrá-la como se estivesse num pequeno palco doméstico — uma espécie de entrelugar onde a rua e a casa se encontram sem cerimónia.
E, sinceramente, não é um mau lugar. A garagem, com a sua imprevisibilidade de caixas, ferramentas, mobiliário e passagens repentinas, é mais dada a arranhões do que a calmaria. Aqui, pelo contrário, ela fica afastada das confusões e mais próxima do ar livre, protegida mas atenta ao mundo que passa. Um exílio suave.
Quando a vejo pousada sobre a carpete — o interior da casa, de certo modo, a prolongar-se até ali — e o brilho das luzes a cair sobre ela, percebo que este deslocamento ganhou algo de ritual. Como se a casa, em vez de a afastar, lhe tivesse preparado um sítio próprio — não tão grandioso como uma garagem, mas infinitamente mais poético. E, claro, se não for para sair mais, cubro-a com a lona justa ao seu formato: um pequeno gesto de proteção, para que a noite não lhe seja completamente áspera.
Talvez seja esse o encanto dos dias frios: até os lugares improvisados ganham significado. E eu, sempre que passo por ela para sair, sinto que a viagem começa ali, mesmo antes de ligar o motor.