Heróis urbanos em dia de sol

O dia de hoje está perfeito. Daqueles que fazem a cidade parecer mais pequena, mais próxima, quase simpática. Um sol limpo, sem desculpas, sem nevoeiros morais. Um dia que pede duas rodas por instinto, não por ideologia.
Tinha acabado de lavar a Vision. Estava limpa, brilhante, encostada ali como quem descansa depois de um banho. Quando fui surpreendido por um estafeta, a Vision já estava seca pelo sol — sinal inequívoco de que o dia estava mesmo decidido a colaborar.
Recebi então uma encomenda. Nada de épico: um pacote banal, embrulhado num saco onde se lia Eco Scooting e, logo abaixo, em letras decididas, Urban Delivery Heroes. Gosto destas coisas. Palavras grandes. Promessas urbanas. Scooters implícitas.
Sorri. Confesso. Há algo em mim que continua a acreditar.
Mas o herói urbano chegou… num automóvel.
Um carro normal. Quatro rodas, duas portas a mais do que o necessário, nenhum silêncio digno de nota. Não era elétrico, nem híbrido, nem sequer envergonhado. Era apenas um carro a cumprir expediente num dia que implorava por uma scooter.
Mas convém esclarecer uma coisa: não ando de scooter porque está sol. Ando sempre. Quando está frio, quando chove, quando venta, quando alguém acha que não é dia. Há sempre uma razão pronta para eu não andar. Eu limito-me a ignorá-las.
Quem gosta, gosta sempre.
É aqui que a coisa me incomoda — não por purismo ambiental, nem por devoção elétrica. A minha mota bebe gasolina e não pede desculpa por isso. É pequena, leve, honesta. Gasta pouco, ocupa pouco, passa onde deve passar. Não promete salvar o planeta; limita-se a respeitar a cidade.
O problema não é o motor — é a promessa.
Chamarem-se Eco Scooting, escreverem Urban Delivery Heroes, e depois aparecerem de carro, num dia de sol radiante, é como vestir licra de ciclista para ir ao café de elevador. Pode acontecer. Mas não é bonito.
Fui ver o site. Era feio. Fui ver as opiniões. Eram más. Tudo começou a alinhar-se com uma clareza solar: não era um projeto urbano falhado — era folclore de marketing. Não é apenas incoerência operacional; é traição simbólica. A scooter como conceito decorativo. O “eco” como adereço. A cidade como cenário genérico.
Talvez haja Inteligência Artificial por ali. A escolher slogans, a afinar manifestos, a desenhar logótipos angulosos. Mas depois falta a outra inteligência, a menos glamorosa: aquela que olha para o céu azul e diz vai de scooter.
Porque se eu ando todos os dias porque gosto, então um conceito empresarial criado à volta das scooters não pode funcionar apenas quando dá jeito. Tem de ser sempre.
Heróis urbanos existem. Vejo-os todos os dias, mesmo quando chove. Não usam slogans, usam capacetes riscados. Não prometem mundos melhores; fazem entregas possíveis.
O saco ficou amarrotado. O sol continuou. A cidade também.
E eu fiquei a pensar que, às vezes, não é preciso reinventar nada. Basta não estragar a ideia.
Duas rodas. Um dia bonito. Um pouco menos de artificialidade.