A tampa das autárquicas

Há uma tampa de esgotos no meio de uma rua próxima, e por onde passo todos os dias, que resume o estado do concelho. Está partida em seis, mas continua no lugar, resignada, a aguentar o peso de quem passa. Passam carros, passam carrinhas de campanha, passam promessas de requalificação urbana e “mobilidade sustentável”, e ninguém repara que o chão onde assentam os slogans já não é inteiro.
A cada passagem, a tampa estremece. As fissuras desenham uma estrela imperfeita, feita de ferro gasto e de indiferença acumulada. Ninguém sabe há quanto tempo está assim — talvez desde as últimas eleições, talvez desde sempre. Mas ali continua, disfarçada entre o paralelo, como se o tempo também tivesse desistido de a consertar.
Para quem anda de mota, é uma cilada. A roda da frente, se ali cai, pode dar direito a crónica póstuma. E no entanto, nenhum cartaz menciona o perigo. Os candidatos circulam em cortejo, com colunas aos berros e sorrisos de catálogo, a prometerem “mais segurança nas vias municipais”. Enquanto isso, a tampa parte-se um pouco mais a cada aceleração política.
A Vision passa devagar, como quem evita não só o buraco mas também a hipocrisia. O ferro range, o piso treme, e a cidade continua — partida, mas funcional, como se a rotina fosse o cimento que segura tudo.
Quando as eleições terminarem, alguém há de prometer de novo o que já prometeu. Mas a tampa, essa, continuará ali: metáfora de ferro fundido, rachada em seis, sustentando a ilusão de que o chão ainda é seguro.
E eu, no retrovisor, verei os carros da campanha afastarem-se — confiantes, inteiros, sobre a tampa que ficou para trás.