Estafeta inútil

10 setembro 2025

Chegou. Vermelha, quadradona, reflexos prateados no interior. Um ar de equipamento hospitalar que me faz sentir meio estafeta, meio paramédico de frangos de churrasco. Parece saída de uma ambulância.
Não traz ligaduras nem soros, mas tem todo o ar de poder salvar vidas — ou pelo menos jantares atrasados.

Hesitei por instantes: isto é um acessório ou uma nova identidade? Olhei-me ao espelho e percebi a mutação. De cidadão comum passei a socorrista de bifanas, mensageiro de refrigerantes, paramédico de pizas.

Não é só uma mochila. É a fronteira entre o sofá e a rua, entre a apatia e a gasolina. Um objeto de nylon que, parado nas escadas, parece já impaciente, à espera do primeiro serviço — mesmo que seja só ir buscar duas baguetes à pastelaria.

A Vision, discreta como sempre, ganhou agora um adereço que grita fluorescente. A cidade está habituada a motas de entrega, não a motas de contemplação. Talvez seja esse o meu pequeno luxo: atravessar ruas sem relógio a contar minutos, mas com espaço para caber o imprevisto.

A verdade é que esta mochila não é discreta. É um anúncio em movimento. Vai gritar pelas ruas:
“Aqui vai um homem ocupado! Em missão! Com calor dentro da caixa!”

Pode enganar o olhar apressado. Não sou paramédico nem estafeta. Sou apenas mais um que circula com urgências próprias — tão simples quanto levar um livro, um casaco ou a vontade de regressar tarde a casa. Mas eu sei o segredo: não transporto encomendas alheias. Transporto desculpas bem embrulhadas para sair de casa.

Já imagino vizinhos a espreitar, convencidos de entregas diretas no bairro. Clientes imaginários a olhar para o relógio. E eu, o estafeta mais inútil da cidade, a saborear a liberdade que só uma mochila exageradamente grande consegue dar. A partir devagarinho, descendo a rua com a pompa de quem vai abastecer uma aldeia inteira.

O plano está completo: um homem, uma mota e uma caixa vermelha pronta para missões fictícias.
Já não sou apenas o tipo que inventa desculpas para andar de mota.
Sou o estafeta de mim mesmo — uniformizado, autorizado pela mochila a transformar cada saída em acontecimento.