Da Praia do Magoito à Avenida Central

Nasci no antigo hospital de Sintra, com vista para a serra. Cresci entre o nevoeiro e os palácios, as ruelas inclinadas e as hortas dos arredores, os chalés com nomes poéticos e os elétricos vermelhos e brancos a caminho da Praia das Maçãs. Era ali que tudo começava: o namoro com o mar, a descoberta da beleza, a certeza de que o mundo podia ser encantado.
Foi nessa terra que vivi a juventude, andei na escola, tive as primeiras namoradas e arranjei o primeiro emprego. Tudo com a serra por perto — ora companheira de silêncio, ora cúmplice de devaneios. Nada, ou muito pouco, tem a ver com Braga. A cidade que hoje me acolhe é outra — mais norte, mais pedra, mais pragmática talvez. Mas é aqui que vivo as minhas experiências com a Vision 110. E é sobre isso que escrevo.
Lá em casa, as motas nunca foram estranhas. Os meus pais sempre foram grandes amantes das duas rodas. O meu pai ainda hoje fala da sua Honda CB 250 como se tivesse sido o primeiro grande amor da vida dele — descreve o som do motor como quem descreve um poema. A minha mãe, por sua vez, conta como foi tirar a licença das 50cc na câmara municipal, vestida com um misto de nervosismo e rebeldia. Havia, nos dois, essa ideia de que a liberdade podia muito bem ter duas rodas e cheirar a gasolina.
Foi perto da Praia do Magoito que surgiu, um dia, na garagem, a minha primeira mota: uma Casal Boss. Não tinha ainda idade legal para a conduzir, mas isso, no campo, era apenas um pormenor. Começaram as voltas clandestinas, os trajetos entre tanques de lavadeiras e fontanários de azulejo, as viagens ao café da aldeia com a adrenalina de quem desafia os limites da autoridade. Fui apanhado uma vez por um GNR, ele próprio tão fora de serviço como eu fora da lei — um empate cordial.
A Casal Boss ensinou-me a sentir o mundo de outra forma. O motor vibrava até às mãos, o ar sabia a pinhal, e as tardes passavam-se a recolher pinhas e a abrir pinhões com pedras do caminho. Tudo era matéria-prima para a aventura. Nada era muito longe — e tudo parecia longe o suficiente para ser vivido como uma viagem.
Nem o cheiro da gasolina, nem o sabor dos pinhões é o mesmo hoje em dia. A Casal ficou para trás. A adolescência também. A serra, os fontanários, os chalés com nomes de flores. Mas a vontade de andar, de ir, de sentir o vento no rosto, essa não mudou. E é por isso que hoje, em Braga, quando monto a Vision 110 para ir ao supermercado ou para me perder de propósito num bairro que ainda não conheço, sinto no meu interior que aquele miúdo, o da Casal Boss, ainda segura o guiador.
Braga não tem a estrada alta sobre as falésias, nem a Praia das Maçãs ao fundo da linha do elétrico. Mas tem outras curvas, outras ruas, outras promessas. Talvez a paisagem tenha mudado, talvez até o condutor tenha mudado. Mas a viagem continua.
Às vezes volto a Sintra. Visito os meus pais, passo junto ao antigo hospital onde nasci, percorro as estradas de curvas fechadas com a mesma reverência de sempre. Mas há sempre um sinal novo, uma regra diferente, uma pequena fronteira onde antes só havia casa. A última vez que fui, cobraram-me uma taxa turística. Uma taxa. A mim. Como quem diz: bem-vindo, forasteiro.
Talvez tenha havido, algures, um divórcio silencioso entre mim e Sintra. Um afastamento que não se quis litigioso, mas que foi acontecendo — por estrada nacional e anos de distância. Afinal, qual é a minha terra? Será Braga, onde vivo e me reencontro todos os dias com a minha mota? Ou será Sintra, onde tudo começou, mesmo que agora já olhe com o mesmo misto de carinho e formalidade que se tem com um primo afastado?
Talvez não precise de ter uma terra. Talvez a minha terra seja apenas a estrada — entre a Praia do Magoito e a Avenida Central, entre quem fui e quem continuo a ser, com o vento na cara e o miúdo da Casal Boss a segurar o guiador.