Contrabando verde numa mula urbana

A manhã ainda mal tinha acordado e já eu recebia uma chamada de emergência. Não era do trabalho, não era dos bombeiros, nem sequer da farmácia de serviço. Era da minha mulher, em plena missão de jardinagem, aflita por se ter esquecido dos carregadores das baterias dos corta-relvas. Sem eles, a manhã corria o risco de ficar irremediavelmente perdida — e eu, inevitavelmente convocado.
Lá fui então, com a Vision a postos. O banco abriu-se como a barriga de um contrabandista, engolindo os dois carregadores de lítio como se fossem barras de ouro em trânsito clandestino. Fechei o banco com o cuidado de quem oculta provas comprometedoras e segui viagem.
As ruas ainda meio sonolentas deram-me passagem cúmplice. Cada semáforo parecia piscar-me o olho, como se reconhecesse a natureza secreta da missão. Não transportava contrabando de tabaco ou de café, como nos velhos tempos da fronteira, mas sim tecnologia de jardinagem de última geração — o que, convenhamos, dá muito menos glamour à coisa.
Chegado ao destino, a entrega fez-se sem assinatura nem recibo, num beco discreto junto a sacos de relva cortada e ferramentas espalhadas. A Vision, fiel cúmplice, ficou em segundo plano, como sempre: ninguém diria que fora ela a transportadora silenciosa desta mercadoria vital.
E eu, que esperava um sábado de passeio urbano, acabei afinal a servir de mula logística para salvar o relvado. Que se há de fazer? Há quem use a mota para fugir à rotina. Eu uso-a para entregar carregadores de cortadores de relva.