Mil e uma palavras

21 julho 2025

A manhã estava limpa. Daquelas que não pedem nada, só prometem. Sabia o destino, não sabia o significado. O motivo era bom: ir buscar o novo livro de Júlio Machado Vaz, Outonecer. Um nome estranho para julho, mas perfeito para mim.

Primeira paragem: livraria no centro da cidade. Entro decidido, quase solene, e pergunto pelo livro. As funcionárias olharam-me com pena — aquela pena educada, profissional, de quem já disse o mesmo trinta vezes hoje.
“Esgotado.”
Mas, vá lá, não me mandaram embora de mãos vazias: uma delas consultou o stock na rede. “Temos oito exemplares numa outra livraria.”
Sorriso discreto. A outra livraria ficava fora da cidade.

Não sei se o livro estava difícil de encontrar ou se era o universo a esticar o momento. A esticar a viagem até ao milhar.

Foi já nesse segundo percurso, entre avenidas e atalhos, que reparei: faltavam só quatro quilómetros para os mil. A marca redonda. O primeiro milhar. E, claro, a mente começou logo a dramatizar — como se fosse a primeira ruga na testa da scooter.

Fiz-me cerimonial: sentei-me melhor, estiquei as costas, respirei fundo. Passaram os últimos quilómetros em câmara lenta. Uma curva, um cão a ladrar, um semáforo simpático, e pronto:
Mil. Mil ao virar da página.

Cheguei à tal livraria como quem entra num santuário. Havia mesmo oito exemplares empilhados, como anunciado. Comprei dois: um para mim, outro para o meu padrasto — fez anos este sábado e pensei em surpreende-lo este ano oferecendo um livro com alma. Pareceu-me escrito a pensar em quem já viveu o suficiente para se emocionar com o que vem devagar.

Mais tarde, liguei-lhe. Notei-lhe a voz embargada. Mostrou-se comovido. Acertei em cheio — gosta do autor, segue-o há anos. Apressou-se logo a ir lê-lo – confidenciou-me a minha mãe. E naquele gesto simples, senti que, sem dar por isso, levei-lhe também um bocadinho do meu passeio.

Isto de fazer 1000 km juntos não é só um número. É uma relação. Cheguei a casa e deixei o capacete pousado como quem pousa um chapéu depois de um baile. Abri o livro. O primeiro parágrafo falou-me de tempo, de memórias, de envelhecer com ternura.

Pensei: talvez outonecer não seja um verbo só para o corpo. Talvez seja também para as máquinas. Para os afetos. Para os caminhos.
Ou então — talvez seja só julho, e eu esteja a complicar.

Mas que foram bons mil quilómetros, foram.
E mais uns quantos… pelos livros, pelas pessoas, e por mim.